Reflexões sobre o trabalho médico


Reflexões sobre o trabalho médico na visão de um praticante yogui contemporâneo - Por Murilo Leandro Marcos*
*o menino sem sobrenome

Aceito, entrego, confio e agradeço.

Aceitação
– trabalhar com gente é assumir a diversidade, a imprevisibilidade, a loucura infinita de cada pessoa. Somos todos frutos e sementes de um sistema, de um ou vastos jeitos de ser numa sociedade esquizofóbica, frenética. Aceitar a realidade não como dada e predestinada, mas como um processo muito maior do que nossas forças de mudança, ajuda-nos a seguir em frente com a tolerância gandhiana e a rebeldia freiriana. Revolução sem violência. Transformação pela subjetividade da palavra. E pela postura. Da coluna e perante a vida. O mundo é mundo desde que o mundo surgiu. Somos um grão de areia no universo cósmico infinito aos olhos humanos. Ao mesmo tempo, somos gigantescos doutores enjalecados nessa sociedade desigual do mundo de hoje, 2012, temos um carimbo mágico e a responsabilidade de manter a chama das vidas acesas. Não é fácil, mas não precisa ser difícil.

Entrega – entrego-me ao trabalho, ao mundo, às relações, ao amor e à vida, com a segurança e a certeza de que tudo é, inicial e naturalmente, feito para dar certo, para seguir o fluxo da vida, como num grande sistema aberto e imprevisível. A teia da vida. A(s) vida(s) sabe(m) que deve(m) seguir seu ritmo, sua homeostase. Uma árvore não pensa. Ela cresce. Procura o sol e o solo. E vive. Quanto menos mexemos, menor a chance de errarmos. Menos sofrimento e menor a energia desperdiçada. Leveza nas relações. Tirar o peso, a responsabilidade e a culpa dos pacientes que tomam rivotril ou se entopem de ibuprofeno. O desgaste é muito grande. Agir na proposição e na complementação por caminhos e terapias alternativas é uma possibilidade. Se a pessoa faz exercício e sente que o exercício faz bem, ela pode talvez continuar a fazer e se livrar (ou não) de suas dores. Se você disser que exercício faz bem e que é ruim ela tomar muitos medicamentos, sem sentir na pele o que é isso, dificilmente terá sucesso – você e ela. Medicina é longitudinal, ao longo do vasto e mutante tempo da vida, nos dias ruins e bons. Se você não der o remédio, muito provavelmente outro médico irá dar. Dê o remédio e crie vínculo, ofereça alternativas, intercale rivotril com passiflora ou valeriana, faça um grupo de relaxamento, seja amigo das pessoas. Quem sabe 3 ou 6 meses depois a pessoa não se desafia e tenta diminuir a dose? Ou não. A única pessoa que a gente pode mudar é o eu. Entregar-se à vida e aceitá-la.

Confiança – se tudo tende a encontrar seu equilíbrio e eu sou parte deste tudo, por que não confiar no todo e em mim?

Gratidão – a vida é linda! Xinguemos a chuva, os politiqueiros, os assassinos, o engarrafamento, a secura, a miséria, a desigualdade, a cidade grande, a violência! Revoltemo-nos. Queiramos mudar o mundo. Talvez até pensemos em nos matar para aliviar a insustentável leveza obesa do ser vivo. A vida seguirá. As árvores agradecerão a chuva. Muitas pessoas ficarão ilhadas e desabrigadas por conta da mesma chuva. É a vida. O sofrimento faz parte da beleza. A natureza faz parte da dor. O arco-íris tem TPM. A planta-carnívora mata moscas. Os seres humanos são as maiores bestas que existem. Perdoem-me as bestas, os demônios, o diabo e os unicórnios. Mas é. E é a vida. E mesmo assim, com tudo do avesso (ou não), continuo achando linda. E agradeço todos os dias.

Amazônia! (Alto rio Negro)

Por que Amazônia? Por que Saúde Indígena? O interesse pelo novo velho.



O que mais me move é acreditar que as culturas indígenas tradicionais, suas maneiras de estar no mundo, seus estados de espírito, suas relações com o meio, podem e devem ser referência. Referência para escaparmos do fim da diversidade (bio, socio, etno), do esgotamento da abundância. Para escaparmos da globalização garimpante que se anuncia já há muito tempo.

Entre os povos tradicionais "os conhecimentos essenciais são bem comuns e não há o espírito deletério da competição que cresce no capitalismo e fomenta desigualdade, desilusão, infelicidade. (...) índios não vivem o desemprego mental, comum entre brancos..." (Osvaldo Augusto Sant'Anna*)

É imensa a contribuição que povos que não possuem o conceito de propriedade privada podem dar à renovação dos sentidos de nossas vidas. Povos que não utilizam a matemática exata como parâmetro do dia-a-dia, mas procuram valores de abordagem mais fluidos e naturais, em harmonia com seus meios. Na vida indígena os números existem mas não regem o mundo.
Há ainda a boa relação com a morte, a aceitação dela, um desfecho final digno e mais tranquilo, sem rejeição.*

Maloca, rara hoje em dia.

Certos povos coletores do alto Rio Negro ("Maku's"), originalmente com alto grau de mobilidade, foram agregados e sedentarizados principalmente por influência ativa de missionários católicos. Sem capacidade de amenizar os impactos da sedentarização (diminuição da caça, aglomeração populacional) e da aculturalização (os telhados de zinco, por exemplo, aumentam a amplitude térmica contribuindo para a incidência da tuberculose; a idéia de pecado foi inóculada ali e a necessidade de roupas, outro exemplo, sem a incorporação dos hábitos de higiene, criou importantes reservatórios de germes e ovos de parasitas). Os indices de desnutrição e de doenças infecto contagiosas nestes povos, hoje são gritantes. Alguns destes povos, inclusive, ainda estão em franco declíneo populacional.

Por simples saturação dos mercados de trabalho nos grandes centros populacionais, profissionais de sáude se envolvem nas ações de saúde indígena. Mas a questão é um tanto complexa e não parece haver bom preparo sócio-antropológico para estes lidarem com os desafios da Saúde Indígena.

Ainda hoje, a penetração em território indígena de catequistas (inclusive estrangeiros) é grande e exerce forte influência política local.

"Saibamos todos  que será tarefa extremamente difícil e que tange  o absurdo explicar aos nossos filhos que em nome de uma mensagem de amor e solidariedade, na figura de Cristo, extinguiram-se povos, arrasaram-se culturas e estabeleceram-se o etnocídio..."*

*"Ações em Saúde Indígena Amazônica" (2007). Soares, Oscar. Ed. FOIRN. (Bibliografia)