#1 - Para Cucuí.

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#1 - Para Cucuí.



Oito horas rio Negro acima. À vista um paredão de pedra, gigantesco, já na Venezuela. É a tríplice fronteira entre Brasil, Venezuela e Colômbia.

Os militares nos receberam na margem. Soldados indígenas com fuzis em mão. Nome, identidade, profissão, “o que você veio fazer aqui?” e click, tua cara no sistema, entrada na fronteira. Militares de patentes mais altas, não indios, pescavam no rio. “Ô Catarina! Tem um parente teu aqui!”.

Ruas concretadas e 3 pequenos comércios. Militares ali há anos, atirando em guerrilheiros malucos, fizeram um modelo mais urbano, raro em área indígena.

O pôr do sol era vermelho vermelho refletindo o final da tarde no paredão de pedra. Fomos ao Polo Base*. Armamos a rede, recusamos o frango Sadia, o sopão Magi e o suco Tang (já pragas aqui). Riram das nossas cuias de cabaça, isso sim era estranho. Nada de carne de caça, açaí, ingá, biju.

Outro dia entristeci com as índias bochechudas tomadoras de prednisona (corticóide). A farmácia e a televisão sempre chegam primeiro. À tarde me convidaram pra jogar bola na nova cancha da comunidade. Índios peladeiros adolescentes que curtiam Nirvana. Curti uma saudade.
Há duas horas de voadeira de Cucuí tem uma cidadezinha venezuelana de 3 mil habitantes chamada San Carlos. Lá o Cháves colocou equipes de saúde, incluindo 14 médicos cubanos na Atenção Primária local. Disseram que atendem qualquer pessoa que se apresente (venezuelano ou não) com todos serviços e simpatia disponíveis. Descobri isso pelas ultrassonografias que as gestantes indígenas me traziam em espanhol.




Kike. Set/2012

#4 - Em Tunuí


#4 - Em Tunuí, para 30 dias.

Ińdios Baniwa, tímidos e quietos.
Uma serra pontuda suavizada por colinas entre vales de açaí, com gente no rio ou trilhando caminhozinhos às roças, ao igarapé. Crianças maiores cuidavam dos mais pequenos. E cachorros magros eram medrosos. Uma cadelinha chamada “Embratel” era a única que fazia festa.

Nas consultas, nas visitas domiciliares, no futebol do fim da tarde, nas subidas de serra, percebi um povo rigoroso e reservado, tranquilo. São evangélicos agora (como boa parte dos índios baniwa do rio Içana). Em conversa no centro comunitário, foi difícil a idéia de nos colocarmos em círculo, eram acostumados ao microfone e ao palestrante, no formato acadêmico ou de igreja. Depois me disseram que a roda e a dança estavam associados ao uso do Caxiri*, sendo o álcool não aceito entre evangélicos. Em conversa sobre “dores do corpo” eu perguntei como faziam pra agachar, pra pegar algo no chão ou trabalhando na roça. Dobraram o tronco sobre o quadril. Sugeri que dobrassem o joelho, como um semi cócoras. Disseram que era posição de cagar. Riram de mim e comigo.

Numa manhã atendi ao pré-natal de uma gestante de alto risco (3 cesáreas anteriores, 41 anos e uma cirurgia de apendicite há 6-7 meses). A princípio, ela desceria para SGC, à CASAI*, 1 mês antes da data provável do parto, o que seria dali há 1 mês mais ou menos. Vi que não batia o tamanho do útero dela com a idade gestacional estimada. Ela já estaria prestes a ganhar. Conversei com a equipe pra anteciparmos a descida da mulher, mas na noite do mesmo dia ela iniciou o Trabalho de Parto. Me arrependi por não ter dado mais atenção àquele olhar muito triste daquela mulher naquela manhã.

Eram 22h e eu tinha um dilema. Descer 8 horas rio abaixo, madrugada toda, com o risco noturno e a enorme possibilidade de termos um parto na voadeira. Ou ficar na comunidade esperando pelo melhor? Perguntei se havia na comunidade alguma parteira ou alguma mulher de confiança da gestante. Dali a pouco apareceu a parteira, justamente uma senhora que eu havia atendido durante a tarde, feito uma massagem na lombar contraída. Eu perguntava pra parteira o que ela achava e ela só respondia “o senhor é que sabe”, ou teria sido “o Senhor é que sabe”? Descidimos descer. Antes, foram 2 horas pra carregar 150 litros de gasolina e um motor 40 de cima para a parte de baixo da cachoeira, pela trilha. Eu pensava que não tinha ido até lá pra carregar gasolina de dono de posto de gasolina morro acima! Fiquei puto com o litro de gasolina que caiu em mim no transporte e fiquei fungando aquele cheiro lucrativo da gasolina. Pensei que não aprovava aquilo, aquela politicagem de combustíveis. Ao mesmo tempo, como um burro de carga que já não sabe o que é caminho sem um fardo nas costas, eu tava alegre da força. Depois voltei até a casinha da senhora com pressa. Lá estavam todos tranquilos, calmos, bem calmos. Um foguinho de barro esquentava a mulher com dores, a parteira ali, presente, acolhendo. Me senti afoito, foi um espelho nítido aquela tranquilidade. Não é que não faziam o que precisava ser feito para aprontarmos a saída, apenas não se apuravam.

Embarcamos meia noite e meia, passamos uma corredeira no escuro, eu tava espantado com a habilidade do prático. Como é que ele desviava das pedras no escuro? É como se ele tivesse toda memória do rio sincronizada com a ação dele. E era do tipo de habilidade/conhecimento popular que atravessa o ser daquele cara. Não há uma mantalização precisa para aquele trabalho tão preciso. Não há cartas do rio Negro, nenhum curso de navegação poderia passar esse conhecimento empírico. Se esses trabalhadores, tivessem consciência da raridade do seu conhecimento, talvez não recebessem tão pouco. Uma greve e o sistema todo para, sem quem possa substituir.
Foi uma das madrugadas mais doidas da minha vida. A lua sorria quase cresente. 8 horas voadeira a toda rio abaixo, torcendo para aquele bebê não nascer, passando um pouco de frio. O bebê não nasceu. Chegando em SGC, fui na ambulância junto até o Hospital Militar. Entrei com a gestante e a primeira coisa que diz o plantonista gozador foi: “Fecha as perna muié!”.

Kike, out/2012

#3 - Resgate para Canadá.


#3 - Resgate para Canadá.
O AIS de Canadá pediu resgate via rádiofonia para uma gestante que estaria sangrando há 10 dias. E encontraríamos ainda uma bebê de 25 dias, com quadro de desnutrição severa, segundo o Tenente do PEF*, e que desceria de S. Joaquim até lá. Não havia nenhuma informação clínica mais detalhada. Tínhamos que “pagar para ver”. Saímos (médico, enfermeira e prático) meio dia, armamos as redes e pernoitamos em Nazaré. Numa casinha, uns 15 da comunidade se reuniam para assistir “Avenida Brasil” na TV. Outro dia cedinho, saímos, passamos a Malacacheta* e a corredeira de Tunuí, chegando final da tarde em Canadá.

A gestante havia abortado naquela manhã, estava repousada na rede, falava fraco e pouco. Foi difícil entendê-la resignada ou aliviada, triste ou quieta? Estava bem clinicamente, sem sangramento patológico ou sinais de infecção. Observaríamos, sem necessidade de descermos com ela.
A criança não viria mais porque o pai não deixou, apesar do desespero do militar. Recusaram o resgate. Soubemos depois que a mãe não amamentava o bebê porque seu leite estava envenenado, soubemos também que a criança acabou, mais tarde, sendo trazida para SGC pelos militares.

Fui convidado pra jogar bola. Era o final do campeonato e eu teria o gosto de jogar a “grande final”. O organizador logo se apresentou dizendo que era o professor da comunidade. Muito cívicos, talvez pela educação militar que receberam nas escolas estaduais, tinham uma caixa de som que tocava o hino nacional brasileiro enquanto nós jogadores estávamos alinhados e aposturados no meio de campo. Eu senti vontade de rir. Imaginava o centro da floresta amazônica, num dos lugares mais distantes que tu possa imaginar, numa vista aérea, lado a lado com os índios e o “brado retumbante” ecoando no espaço. Era surreal.

O jogo começou, muita raça, muita canelada e chutão pra frente, mas só alegria, não vi atrito algum entre os jogadores. Fiz um gol de cabeça e achei até sacanagem pela diferença de altura entre eu e os outros peladeiros. Acabamos perdendo o jogo, mas recebemos medalha cor de prata. Meu time me elegeu capitão (porque eu era “grandão”) para erguer o troféu de segundo lugar.

kike, out2012


#2 - Colonizadores


#2 - Colonizadores.
Sinto vivenciar uma “realidade” muito estranha. Estranha, mas na qual me encontro ativo como ser do nosso tempo (primitivo e com uma maletinha de antibióticos na mão).

Aqui algumas histórias/estórias (sempre entrelaçadas*).

Contam:

...de uma figura marcante, a missionária evangélica Sofia Muller. A americana, lá pela década de 40, traduziu a bíblia pra língua dos Baniwa (tronco linguístico Aruwak), inclusive adequando algumas passagens à realidade local, onde onças e antas aparecem. Em certa medida dizem que protegeu as populações indígenas das relações de escravismo moderno com os “Regatões”, os comerciantes. Por outro lado os Baniwas que sofreram mais forte influência da profeta, pelo que vi, não sentam mais em roda, não dançam.

…de um pastor coreano, Pastor Kim, que tem um barco bem equipado e vive subindo o alto Rio Negro, realizando consulta médica com médicos voluntários e distribuindo medicamentos. O homem vem lá da Coréia pra pregar o evangelho às populações indígenas do Alto Rio Negro!

...da Bolsa Família que fez, subitamente, famílias e comunidades passarem a interagir com dinheiro-consumo, com a cidade. Boa parte gasta-se em Salgadinho e Cachaça
(foto do carregamento de salgadinho). Os hup'das , mais “selvagens”, menos cívicos e documentados, agora se aproximam mais das populações ribeirinhas para trocar carne de caça moqueada* por pacotinhos de suco Tang. Poderia haver, como há em cuba então, uma caderneta com a relação de produtos saudáveis/adequados (uma dieta regional equilibrada como sugestão ou bonificação, subsídio aos orgânicos, etc.) a serem liberados para o Bolsa Família. Parece desastroso o bem de consumo, o mercado livre, sem um conhecimento comunitário correspondente.

E quando penso, não posso me enganar, também somos colonizadores, de um jeito. Agentes de assistência à saúde, serviço público e gratuito, mas envoltos em relações que mal deciframos, promovendo influências que mal podemos prever. Entendo os termos da redução de danos, da necessidade de assistência e compensação histórica, num trabalho em populações marginais, ameaçadas e já vulneráveis, algumas até em declíneo populacional.

O que talvez me coloca diferente desses tantos outros colonizadores (talvez e se conseguir ter muita sensibilidade e cuidado na ação), é a percepção de que aos índios não falta nenhuma revelação. Não trago comigo nenhuma missão
para eles, nenhum meio para se elevarem, nenhuma ideia de que já não sejam aptos, perfeitos e salvos. Trago sim algumas idéias de manutenção dinâmica, do direito à terra, da valorização própria das culturas tradicionais e dos conhecimentos e culturas mais orgânicos, da auto-gestão, da simplicidade. Mas isso é inicialmente demanda minha, como se eu quisesse que “eles” (indígenas) quisessem essa preservação daquilo que sou eu mesmo que valorizo, pelo que vivi e observei por aí, pelos descaminhos e violências, pelo sofrimento que vejo, pelos limites críticos que enfrentamos, pela ameaça que somos a nós mesmos. Busco como que uma possibilidade para o homem...

Lidamos também com a contrariedade da ação individual, curativa ou que alivia o sofrimento agora, e as repercussões socioculturais, transversais, dessas ações...


kike, out/2012

*sugestão de livro: “Fractais da História” - Paulo Urban


O povo Brasileiro

Série “O Povo Brasileiro” de Darci Ribeiro:

 

p.27 – Conflito biótico
Esse
 conflito
 se
 dá
 em
 todos
 os
 níveis,
 predominantemente
 no
 biótico,


como
 uma
 guerra
 bacteriológica
 travada
 pelas
 pestes
 que
 o
 branco
 trazia


no
 corpo
 e
 eram
 mortais
 para
 as
 populações
 indenes.
 No
 ecológico,
 pela


disputa
 do
 território,
 de
 suas
 matas
 e
 riquezas
 para
 outros
 usos.
 No


econômico
 e
 social,
 pela
 escravização
 do
 índio,
 pela
 mercantilização
 das


relações
 de
 produção,
 que
 articulou
 os
 novos
 mundos
 ao
 velho
 mundo


europeu
 como 
provedores
 de
 gêneros 
exóticos,
 cativos 
e 
ouros.




p.38 – Morriam de tristeza:

Mais 
tarde,
com 
a 
destruição 
das 
bases 
da 
vida 
social 
indígena, 
a 
negação


de
 todos
 os
 seus
 valores,
 o
 despojo,
 o
 cativeiro,
 muitíssimos
 índios


deitavam 
em
 suas 
redes
 e
 se 
deixavam 
morrer, 
como 
só 
eles 
têm 
o 
poder 
de


fazer.
 Morriam
 de
 tristeza,
 certos
 de
 que
 todo
 o
 futuro
 possível
 seria
 a


negação
 mais 
horrível
 do 
passado, 
uma
 vida 
indigna 
de 
ser 
vivida 
por
 gente


verdadeira.





Sobre
 esses
 índios
 assombrados
 com
 o
 que
 lhes
 sucedia
 é
 que
 caiu
 a


pregação
 missionária,
 como
 um
 flagelo.
 Com
 ela,
 os
 índios
 souberam
 que


era
 por 
culpa 
sua, 
de 
sua 
iniqüidade,
de
 seus 
pecados,
que 
o 
bom 
deus 
do


céu
 caíra
 sobre
 eles,
 como
 um
 cão
 selvagem,
 ameaçando
 lançá‐los
 para


sempre
 nos
 infernos.
 O
 bem
 e
 o
 mal,
 a
 virtude
 e
 o
 pecado,
 o
 valor
 e
 a


covardia,
tudo 
se 
confundia, 
transtrocando 
o 
belo 
com
o 
feio, 
o 
ruim 
com
o


bom.
 Nada
 valia,
 agora
 e
 doravante,
 o
 que
 para
 eles
 mais
 valia:
 a
 bravura


gratuita,
 a
 vontade 
de 
beleza, 
a 
criatividade, 
a 
solidariedade. 
A 
cristandade


surgia
 a 
seus
 olhos
 como 
o 
mundo 
do
 pecado,
 das
 enfermidades
 dolorosas 
e


mortais,
 da covardia, 
que
 se 
adonava 
do 
mundo 
índio, 
tudo 
conspurcando,


tudo
 apodrecendo.




p.41 Velho Tupinambá
"Os
 nossos
 tupinambás
 muito
 se
 admiram
 dos
 franceses
 e
 outros


estrangeiros
 se d
arem
 ao
 trabalho
 de 
ir
 buscar
 os
 seus
 arabutan.
 Uma
 vez
 um


velho
 perguntou‐me:
 Por
 que
 vindes
 vós
 outros,
 maírs
 e
 perôs
 (franceses
 e


portugueses)
 buscar
 lenha
 de
 tão
 longe
 para
 vos
 aquecer?
 Não
 tendes


madeira
 em
 vossa
 terra?
 Respondi
 que
 tínhamos
 muita,
 mas
 não
 daquela


qualidade,
 e
 que
 não
 a
 queimávamos,
 como
 ele
 o
 supunha,
 mas
 dela


extraíamos
 tinta
 para
 tingir,
 tal
 qual
 o
 faziam
 eles
 com
 os
 seus
 cordões
 de


algodão 
e
 suas 
plumas.





Retrucou
 o
 velho
 imediatamente:
 e
 porventura
 precisais
 de
 muito?
 ‐
 Sim,


respondi‐lhe,
 pois
 no
 nosso
 país
 existem
 negociantes
 que
 possuem
 mais


panos,
 facas, 
tesouras, 
espelhos
 e 
outras 
mercadorias 
do 
que 
podeis 
imaginar


e
 um
 só
 deles
 compra
 todo
 o
 pau‐brasil
 com
 que
 muitos
 navios
 voltam


carregados.
 ‐
 Ah!
 retrucou
 o
 selvagem,
 tu
 me
 contas
 maravilhas,


acrescentando
 depois
 de
 bem
 compreender
 o
 que
 eu
 lhe
 dissera:
 Mas
 esse


homem 
tão 
rico
 de 
que
 me 
falas 
não
 morre? 
Sim,
 disse 
eu, 
morre 
como 
os


outros.





Mas
 os
 selvagens
 são
 grandes
 discursadores
 e
 costumam
 ir
 em
 qualquer


assunto
 até
 o
 fim,
 por
 isso
 perguntou‐me
 de
 novo:
 e
 quando
 morrem
 para


quem
 fica 
o 
que 
deixam?
 
Para 
seus 
filhos
 se 
os 
têm, 
respondi; 
na 
falta 
destes


para 
os
 irmãos 
ou 
parentes 
mais 
próximos. 
‐ 
Na
 verdade,
 continuou 
o 
velho,

que,
 como
 vereis,
 não
 era 
nenhum
 tolo, 
agora
 vejo
 que 
vós
 outros 
maírs 
sois


grandes
 loucos,
 pois
 atravessais
 o
 mar
 e
 sofreis
 grandes
 incômodos,
 como


dizeis
 quando
 aqui
 chegais,
 e
 trabalhais
 tanto
 para
 amontoar
 riquezas
 para


vossos
 filhos
 ou 
para 
aqueles 
que 
vos
 sobrevivem! 
Não 
será 
a 
terra 
que 
vos


nutriu
 suficiente
 para
 alimentá‐los
 também?
 Temos
 pais,
 mães
 e
 filhos
 a


quem amamos;
 mas 
estamos 
certos 
de 
que 
depois 
da
 nossa 
morte 
a 
terra 
que


nos
 nutriu
 também
 os
 nutrirá,
 por
 isso
 descansamos
 sem
 maiores
 cuidados


(Léry
1960:151‐61)."


p.43 - Fazer pelo gosto:


Uma
 mulher
 tecia 
uma 
rede 
ou
 trançava 
um
 cesto 
com 
a
perfeição 
de 
que


era 
capaz, 
pelo
 gosto 
de 
expressar‐se 
em 
sua
 obra, 
como
 um
 fruto 
maduro


de 
sua 
ingente 
vontade de 
beleza. 
Jovens, 
adornados 
de 
plumas 
sobre 
seus


corpos 
escarlates
 de 
urucu,
 ou
 verde‐azulados
 de 
jenipapo, 
engalfinhavam‐

se
 em
 lutas
 desportivas
 de
 corpo
 a
 corpo,
 em
 que
 punham
 a
 energia
 de


batalhas
 na 
guerra 
para 
viver 
seu 
vigor 
e
 sua 
alegria.



p.62 – Classe dirigente:
Nada é mais continuado, tampouco é tão permanente, nesses 5 séculos, do que essa classe dirigente exógena e infiel ao seu povo.


p.65 - Ideologia cristã:

Era
 a
 dialética
 do
 senhorio
 natural
 do
 cristão
 contra
 a
 servidão,
 natural


também,
 do
 bárbaro.
 Com
 o
 passar
 das
 eras,
 este
 acabaria
 por
 sair
 da


infância
 pagã, 
da 
indolência
 inata, 
da 
lubricidade 
e 
do 
pecado.





Ideologia
 nenhuma,
 antes
 nem
 depois,
 foi
 tão
 convincente
 para
 quem


exercia
 a
 hegemonia,
 nem
 tão
 inelutável
 para
 quem
 a
 sofria,
 escravo
 ou


vassalo.
 Desapossados
 de
 suas
 terras,
 escravizados
 em
 seus
 corpos,


convertidos
 em
 bens
semoventes 
para 
os 
usos 
que 
o 
senhor 
lhes 
desse, 
eles


eram
 também
 despojados
 de
 sua
 alma.
 Isso
 se
 alcançava
 através
 da


conversão
 que
 invadia
 e
 avassalava
 sua
 própria
 consciência,
 fazendo‐os


verem‐se
 a 
si
 mesmos 
como 
a
 pobre 
humanidade 
gentílica 
e 
pecadora 
que,


não
 podendo
 salvar‐se 
neste 
vale 
de 
lágrimas, 
só 
podia 
esperar, 
através 
da


virtude,
 a
 compensação
 vicária
 de
 uma
 eternidade
 de
 louvor
 à
 glória
 de


Deus
 no 
Paraíso.





Tal 
é 
a 
força
 dessa
 ideologia
 que 
ainda 
hoje 
ela 
impera, 
sobranceira.
 Faz 
a


cabeça
 do
 senhorio
 classista
 convencido
 de
 que
 orienta
 e
 civiliza
 seus


serviçais,
 forçando‐os
 a 
superar 
sua
 preguiça 
inata 
para 
viverem
 vidas 
mais


fecundas
 e
 mais
 lucrativas.
 Faz,
 também,
 a
 cabeça
 dos
 oprimidos,
 que


aprendem
 a
 ver 
a
 ordem 
social
 como
 sagrada 
e
 seu 
papel 
nela 
prescrito 
de


criaturas
 de 
Deus 
em 
provação, 
a
 caminho 
da 
vida 
eterna.


p.101 – Índio genérico:


Índios
 e
 brasileiros
 se
 opõem
 como
 alternos
 étnicos
 em
 um
 conflito


irredutível,
que 
jamais
 dá
 lugar 
a 
uma 
fusão.
 Onde
 quer
 que
 um
 grupo 
tribal


tenha
 oportunidade
 de
 conservar
 a
 continuidade
 da
 própria
 tradição
 pelo


convívio
 de
 pais
 e
 filhos,
 preserva‐se
 a
 identificação
 étnica,
 qualquer
 que


seja
 o
 grau
 de
 pressão
 assimiladora
 que
 experimente.
 Através
 desse


convívio 
aculturativo,
porém,
os 
índios
 se
 tornam 
cada 
vez
 menos
 índios 
no


plano
 cultural,
 acabando
 por
 ser
 quase
 idênticos
 aos
 brasileiros
 de
 sua


região
 na
 língua
 que 
falam,
nos 
modos 
de 
trabalhar,
de 
divertir‐se 
e 
até
 nas


tradições
 que 
cultuam. 
Não 
obstante, 
permanecem 
identificando‐se
 com 
sua


etnia
 tribal
 e 
sendo 
assim
 identificados
 pelos 
representantes 
da
 sociedade


nacional 
com

 quem 
mantêm
 contato.
O
 passo 
que
 se
 dá
 nesse 
processo
 não


é, 
pois, 
como 
se 
supôs, 
o 
trânsito 
da 
condição 
de 
índio 
a 
de 
brasileiro, 
mas


da
 situação
 de
 índios
 específicos,
 investidos
 de
 seus
 atributos
 e
 vivendo


segundo
 seus
 costumes,
 à
 condição
 de
 índios
 genéricos,
 cada
 vez
 mais


aculturados 
mas 
sempre 
índios 
em 
sua 
identificação
 étnica.




p.106 – Permanecer humanos:
O
 espantoso
 é
 que
 os
 índios
 como
 os
 pretos,
 postos
 nesse
 engenho


deculturativo,
 consigam
 permanecer
 humanos.
 Só
 o
 conseguem,
 porém,


mediante
 um
 esforço
 inaudito
 de
 auto‐reconstrução
 no
 fluxo
 do
 seu


processo
 de
 desfazimento.


p.108 – Pretos e índios supliciados:
Nenhum
 povo
 que
 passasse
 por
 isso
 como
 sua
 rotina
 de
 vida,
 através
 de


séculos,
 sairia
 dela
 sem
 ficar
 marcado
 indelevelmente.
 Todos
 nós,


brasileiros,
 somos
 carne
 da
 carne
 daqueles
 pretos
 e
 índios
 supliciados.


Todos 
nós 
brasileiros 
somos, 
por 
igual, 
a 
mão 
possessa 
que
 os 
supliciou. 
A


doçura 
mais 
terna 
e 
a 
crueldade 
mais 
atroz 
aqui 
se
 conjugaram
 para 
fazer


de 
nós 
a
gente 
sentida
 e 
sofrida 
que 
somos 
e 
a
 gente 
insensível 
e 
brutal, 
que


também
 somos.
 Descendentes
 de
 escravos
 e
 de
 senhores
 de
 escravos


seremos
 sempre 
servos 
da 
malignidade 
destilada 
e 
instalada 
em 
nós, 
tanto


pelo
 sentimento 
da
 dor 
intencionalmente 
produzida
 para 
doer 
mais, 
quanto


pelo
 exercício 
da 
brutalidade 
sobre 
homens, 
sobre 
mulheres, 
sobre 
crianças


convertidas
 em
 pasto 
de 
nossa 
fúria.





A
 mais
 terrível
 de
 nossas
 heranças
 é
 esta
 de
 levar
 sempre
 conosco
 a


cicatriz
 de 
torturador 
impressa 
na 
alma 
e 
pronta 
a 
explodir 
na 
brutalidade


racista
 e
 classista.
 Ela
 é
 que
 incandesce,
 ainda
 hoje,
 em
 tanta
 autoridade


brasileira
 predisposta
 a
 torturar,
 seviciar
 e
 machucar
 os
 pobres
 que
 lhes


caem
 às
 mãos.
 Ela,
 porém,
 provocando
 crescente
 indignação
 nos
 dará


forças,
 amanhã,
 para
 conter
 os
 possessos
 e
 criar
 aqui
 uma
 sociedade


solidária.


p.131 Historieta clássica:
A
 historieta
 clássica,
 tão
 querida
 dos
 historiadores,
 segundo
 a
 qual
 os


índios 
foram
 amadurecendo 
para 
a
 civilização 
de 
forma
 que
 cada 
aldeia 
foi


se
 convertendo
 em
 vila,
 é
 absolutamente
 inautêntica.
 O
 estudo
 que


realizamos
 para
 a
 UNESCO,
 esperançosos
 de
 apresentar
 o
 Brasil
 como
 um


país 
por
 excelência 
assimilacionista,
 demonstrou 
precisamente
 o 
contrário.


O
 índio
 é
 irredutível
 em
 sua
 identificação
 étnica,
 tal
 como
 ocorre
 com
 o


cigano 

ou
 com 
o 
judeu.
 Mais 
perseguição 
só 
os 
afunda 
mais 
convictamente
 dentro


de
 si
 mesmos.
 Tal
 não
 conseguem
 os
 serviços
 oficiais
 de
 proteção,


geralmente
 entregues
 a
 missionários,
 e
 também
 não
 conseguem
 esses


últimos.
 Povos 
há, 
como 
os 
Bororo, 
por
 exemplo, 
com
 mais 
de 
século 
e 
meio


de
 vida
 catequética,
 que
 permanecem
 Bororo,
 pouco
 alterados
 pela
 ação


missionária;
 ou
 os
 Guarani,
 com
 mais
 de
 quatro
 séculos
 de
 contato
 e


dominação.




p. 131 - Salesianos do Rio Negro:



Algum
 êxito 
alcançam 
missões 
muito
 atrasadas, 
como 
os 
salesianos 
do 
rio


Negro,
 que,
 empenhados
 em
 ocidentalizar
 e
 catequizar
 os
 índios
 daquela


área,
 juntaram
 as
 crianças
 de
 tribos
 diferentes
 nas
 mesmas
 escolas,


preenchendo
 assim
 a
 condição 
essencial 
para
 desindianizar 
os 
índios, 
que 
é


a
 ruptura
 das
 relações
 da
 velha
 transmissão
 de
 pais
 a
 filhos.
 O
 que


alcançaram
 não
 foram
 italianinhos,
 mas
 moças
 e
 rapazcs
 marginalizados,


que
 não 
sabiam
 ser 
índios 
nem
 civilizados, 
e 
lá 
vivem 
em 
vil 
tristeza.




p.153 - Processo de formação:

O
 processo de 
formação 
do 
povo 
brasileiro, 
que 
se 
fez
 pelo 
entrechoque 
de


seus
 contingentes 
índios, 
negros 
e 
brancos, 
foi, 
por
 conseguinte, 
altamente


conflitivo.
 Pode‐se
 afirmar,
 mesmo,
 que
 vivemos
 praticamente
 em
 estado


de
 guerra
 latente,
 que,
 por
 vezes,
 e
 com
 freqüência,
 se
 torna
 cruento,


sangrento.





De 
1500 
até 
hoje, 
esses 
enfrentamentos 
se 
vêm
 desencadeando 
através 
de


lutas 
armadas
 contra 
cada 
tribo 
que 
se 
defronta 
com
 a 
sociedade 
nacional,


em
 sua
 expansão 
inexorável 
pelo 
território
 de
 que 
vai 
se 
apropriando 
como


seu
 chão
 do
 mundo:
 a
 base
 física
 de
 sua
 existência.
 Os
 Yanomami
 e
 as


emoções
 desencontradas 
que 
eles 
provocam
 entre 
os 
que 
os 
defendem
 e 
os


que 
querem
 desalojá‐los 
são 
apenas
 o 
último 
episódio
 dessa 
guerra 
secular.






p.154 – Desigualdade de forças:
As
 forças
 que
 se
 defrontam
 nessas
 lutas
 não
 podiam
 ser
 mais
 cruamente


desiguais.
 De
 um
 lado,
 sociedades
 tribais,
 estruturadas
 com
 base
 no


parentesco
 e
 outras
 formas
 de
 sociabilidade,
 armadas
 de
 uma
 profunda


identificação
 étnica,
 irmanadas
 por
 um
 modo
 de
 vida
 essencialmente


solidário.
 Do
 lado
 oposto,
 uma
 estrutura
 estatal,
 fundada
 na
 conquista
 e


dominação
 de
 um
 território,
 cujos
 habitantes,
 qualquer
 que
 seja
 a
 sua


origem,
 compõem
 uma
 sociedade
 articulada
 em
 classes,
 vale
 dizer,


antagonicamente
 opostas
 mas
 imperativamente
 unificadas
 para
 o


cumprimento
 de
 
 metas
 econômicas
 
 socialmente
 irresponsáveis.
 A


primeira
 das
 quais
 é
 a
 ocupação
 do
 território.
 Onde
 quer
 que
 um


contingente 
etnicamente
 estranho
 procure,
 dentro
 desse
 território, 
manter


seu
 próprio
 modo
 tradicional
 de
 vida,
 ou
 queira
 criar
 para
 si
 um
 gênero


autônomo 
de 
existência, 
estala 
o 
conflito 
cruento.




p.162 intermediaçao alucinada

Essa
 intermediação
 alucinada
 foi,
 por
 séculos,
 o
 motor
 mais
 poderoso
 da


civilização
 ocidental.
 Aquele
 que
 mais
 afetou
 o
 destino
 do
 gênero
 humano


pelo
 número
 espantoso
 de
 povos
 e
 de
 seres
 que
 mobilizou,
 desgastou
 e


transfigurou. 
Foi
 exercido 
sempre 
eficazmente, 
da 
forma
 mais 
impessoal 
e


fria,
 por
 honrados
 dignatários,
 com
 o
 sentimento
 de
 que
 se
 ocupavam
 de


um
 negócio,
 muitas
 vezes,
 aliás,
 dignificado
 como
 a
 grande
 missão
 do


homem
 branco 
como 
herói 
civilizador 
e 
cristianizador.