p.27 – Conflito biótico
Esse
conflito
se
dá
em
todos
os
níveis,
predominantemente
no
biótico,
como
uma
guerra
bacteriológica
travada
pelas
pestes
que
o
branco
trazia
no
corpo
e
eram
mortais
para
as
populações
indenes.
No
ecológico,
pela
disputa
do
território,
de
suas
matas
e
riquezas
para
outros
usos.
No
econômico
e
social,
pela
escravização
do
índio,
pela
mercantilização
das
relações
de
produção,
que
articulou
os
novos
mundos
ao
velho
mundo
europeu
como
provedores
de
gêneros
exóticos,
cativos
e
ouros.
p.38 – Morriam de tristeza:
Mais
tarde,
com
a
destruição
das
bases
da
vida
social
indígena,
a
negação
de
todos
os
seus
valores,
o
despojo,
o
cativeiro,
muitíssimos
índios
deitavam
em
suas
redes
e
se
deixavam
morrer,
como
só
eles
têm
o
poder
de
fazer.
Morriam
de
tristeza,
certos
de
que
todo
o
futuro
possível
seria
a
negação
mais
horrível
do
passado,
uma
vida
indigna
de
ser
vivida
por
gente
verdadeira.
Sobre
esses
índios
assombrados
com
o
que
lhes
sucedia
é
que
caiu
a
pregação
missionária,
como
um
flagelo.
Com
ela,
os
índios
souberam
que
era
por
culpa
sua,
de
sua
iniqüidade,
de
seus
pecados,
que
o
bom
deus
do
céu
caíra
sobre
eles,
como
um
cão
selvagem,
ameaçando
lançá‐los
para
sempre
nos
infernos.
O
bem
e
o
mal,
a
virtude
e
o
pecado,
o
valor
e
a
covardia,
tudo
se
confundia,
transtrocando
o
belo
com
o
feio,
o
ruim
com
o
bom.
Nada
valia,
agora
e
doravante,
o
que
para
eles
mais
valia:
a
bravura
gratuita,
a
vontade
de
beleza,
a
criatividade,
a
solidariedade.
A
cristandade
surgia
a
seus
olhos
como
o
mundo
do
pecado,
das
enfermidades
dolorosas
e
mortais,
da covardia,
que
se
adonava
do
mundo
índio,
tudo
conspurcando,
tudo
apodrecendo.
p.41 Velho Tupinambá
"Os
nossos
tupinambás
muito
se
admiram
dos
franceses
e
outros
estrangeiros
se d
arem
ao
trabalho
de
ir
buscar
os
seus
arabutan.
Uma
vez
um
velho
perguntou‐me:
Por
que
vindes
vós
outros,
maírs
e
perôs
(franceses
e
portugueses)
buscar
lenha
de
tão
longe
para
vos
aquecer?
Não
tendes
madeira
em
vossa
terra?
Respondi
que
tínhamos
muita,
mas
não
daquela
qualidade,
e
que
não
a
queimávamos,
como
ele
o
supunha,
mas
dela
extraíamos
tinta
para
tingir,
tal
qual
o
faziam
eles
com
os
seus
cordões
de
algodão
e
suas
plumas.
Retrucou
o
velho
imediatamente:
e
porventura
precisais
de
muito?
‐
Sim,
respondi‐lhe,
pois
no
nosso
país
existem
negociantes
que
possuem
mais
panos,
facas,
tesouras,
espelhos
e
outras
mercadorias
do
que
podeis
imaginar
e
um
só
deles
compra
todo
o
pau‐brasil
com
que
muitos
navios
voltam
carregados.
‐
Ah!
retrucou
o
selvagem,
tu
me
contas
maravilhas,
acrescentando
depois
de
bem
compreender
o
que
eu
lhe
dissera:
Mas
esse
homem
tão
rico
de
que
me
falas
não
morre?
Sim,
disse
eu,
morre
como
os
outros.
Mas
os
selvagens
são
grandes
discursadores
e
costumam
ir
em
qualquer
assunto
até
o
fim,
por
isso
perguntou‐me
de
novo:
e
quando
morrem
para
quem
fica
o
que
deixam?
Para
seus
filhos
se
os
têm,
respondi;
na
falta
destes
para
os
irmãos
ou
parentes
mais
próximos.
‐
Na
verdade,
continuou
o
velho,
que,
como
vereis,
não
era
nenhum
tolo,
agora
vejo
que
vós
outros
maírs
sois
grandes
loucos,
pois
atravessais
o
mar
e
sofreis
grandes
incômodos,
como
dizeis
quando
aqui
chegais,
e
trabalhais
tanto
para
amontoar
riquezas
para
vossos
filhos
ou
para
aqueles
que
vos
sobrevivem!
Não
será
a
terra
que
vos
nutriu
suficiente
para
alimentá‐los
também?
Temos
pais,
mães
e
filhos
a
quem amamos;
mas
estamos
certos
de
que
depois
da
nossa
morte
a
terra
que
nos
nutriu
também
os
nutrirá,
por
isso
descansamos
sem
maiores
cuidados
(Léry
1960:151‐61)."
p.43 - Fazer pelo gosto:
Uma
mulher
tecia
uma
rede
ou
trançava
um
cesto
com
a
perfeição
de
que
era
capaz,
pelo
gosto
de
expressar‐se
em
sua
obra,
como
um
fruto
maduro
de
sua
ingente
vontade de
beleza.
Jovens,
adornados
de
plumas
sobre
seus
corpos
escarlates
de
urucu,
ou
verde‐azulados
de
jenipapo,
engalfinhavam‐
se
em
lutas
desportivas
de
corpo
a
corpo,
em
que
punham
a
energia
de
batalhas
na
guerra
para
viver
seu
vigor
e
sua
alegria.
p.62 – Classe dirigente:
Nada é mais continuado, tampouco é tão permanente, nesses 5 séculos, do que
essa classe dirigente exógena e infiel ao seu povo.
p.65 - Ideologia cristã:
Era
a
dialética
do
senhorio
natural
do
cristão
contra
a
servidão,
natural
também,
do
bárbaro.
Com
o
passar
das
eras,
este
acabaria
por
sair
da
infância
pagã,
da
indolência
inata,
da
lubricidade
e
do
pecado.
Ideologia
nenhuma,
antes
nem
depois,
foi
tão
convincente
para
quem
exercia
a
hegemonia,
nem
tão
inelutável
para
quem
a
sofria,
escravo
ou
vassalo.
Desapossados
de
suas
terras,
escravizados
em
seus
corpos,
convertidos
em
bens
semoventes
para
os
usos
que
o
senhor
lhes
desse,
eles
eram
também
despojados
de
sua
alma.
Isso
se
alcançava
através
da
conversão
que
invadia
e
avassalava
sua
própria
consciência,
fazendo‐os
verem‐se
a
si
mesmos
como
a
pobre
humanidade
gentílica
e
pecadora
que,
não
podendo
salvar‐se
neste
vale
de
lágrimas,
só
podia
esperar,
através
da
virtude,
a
compensação
vicária
de
uma
eternidade
de
louvor
à
glória
de
Deus
no
Paraíso.
Tal
é
a
força
dessa
ideologia
que
ainda
hoje
ela
impera,
sobranceira.
Faz
a
cabeça
do
senhorio
classista
convencido
de
que
orienta
e
civiliza
seus
serviçais,
forçando‐os
a
superar
sua
preguiça
inata
para
viverem
vidas
mais
fecundas
e
mais
lucrativas.
Faz,
também,
a
cabeça
dos
oprimidos,
que
aprendem
a
ver
a
ordem
social
como
sagrada
e
seu
papel
nela
prescrito
de
criaturas
de
Deus
em
provação,
a
caminho
da
vida
eterna.
p.101 – Índio genérico:
Índios
e
brasileiros
se
opõem
como
alternos
étnicos
em
um
conflito
irredutível,
que
jamais
dá
lugar
a
uma
fusão.
Onde
quer
que
um
grupo
tribal
tenha
oportunidade
de
conservar
a
continuidade
da
própria
tradição
pelo
convívio
de
pais
e
filhos,
preserva‐se
a
identificação
étnica,
qualquer
que
seja
o
grau
de
pressão
assimiladora
que
experimente.
Através
desse
convívio
aculturativo,
porém,
os
índios
se
tornam
cada
vez
menos
índios
no
plano
cultural,
acabando
por
ser
quase
idênticos
aos
brasileiros
de
sua
região
na
língua
que
falam,
nos
modos
de
trabalhar,
de
divertir‐se
e
até
nas
tradições
que
cultuam.
Não
obstante,
permanecem
identificando‐se
com
sua
etnia
tribal
e
sendo
assim
identificados
pelos
representantes
da
sociedade
nacional
com
quem
mantêm
contato.
O
passo
que
se
dá
nesse
processo
não
é,
pois,
como
se
supôs,
o
trânsito
da
condição
de
índio
a
de
brasileiro,
mas
da
situação
de
índios
específicos,
investidos
de
seus
atributos
e
vivendo
segundo
seus
costumes,
à
condição
de
índios
genéricos,
cada
vez
mais
aculturados
mas
sempre
índios
em
sua
identificação
étnica.
p.106 – Permanecer humanos:
O
espantoso
é
que
os
índios
como
os
pretos,
postos
nesse
engenho
deculturativo,
consigam
permanecer
humanos.
Só
o
conseguem,
porém,
mediante
um
esforço
inaudito
de
auto‐reconstrução
no
fluxo
do
seu
processo
de
desfazimento.
p.108 – Pretos e índios supliciados:
Nenhum
povo
que
passasse
por
isso
como
sua
rotina
de
vida,
através
de
séculos,
sairia
dela
sem
ficar
marcado
indelevelmente.
Todos
nós,
brasileiros,
somos
carne
da
carne
daqueles
pretos
e
índios
supliciados.
Todos
nós
brasileiros
somos,
por
igual,
a
mão
possessa
que
os
supliciou.
A
doçura
mais
terna
e
a
crueldade
mais
atroz
aqui
se
conjugaram
para
fazer
de
nós
a
gente
sentida
e
sofrida
que
somos
e
a
gente
insensível
e
brutal,
que
também
somos.
Descendentes
de
escravos
e
de
senhores
de
escravos
seremos
sempre
servos
da
malignidade
destilada
e
instalada
em
nós,
tanto
pelo
sentimento
da
dor
intencionalmente
produzida
para
doer
mais,
quanto
pelo
exercício
da
brutalidade
sobre
homens,
sobre
mulheres,
sobre
crianças
convertidas
em
pasto
de
nossa
fúria.
A
mais
terrível
de
nossas
heranças
é
esta
de
levar
sempre
conosco
a
cicatriz
de
torturador
impressa
na
alma
e
pronta
a
explodir
na
brutalidade
racista
e
classista.
Ela
é
que
incandesce,
ainda
hoje,
em
tanta
autoridade
brasileira
predisposta
a
torturar,
seviciar
e
machucar
os
pobres
que
lhes
caem
às
mãos.
Ela,
porém,
provocando
crescente
indignação
nos
dará
forças,
amanhã,
para
conter
os
possessos
e
criar
aqui
uma
sociedade
solidária.
p.131 Historieta clássica:
A
historieta
clássica,
tão
querida
dos
historiadores,
segundo
a
qual
os
índios
foram
amadurecendo
para
a
civilização
de
forma
que
cada
aldeia
foi
se
convertendo
em
vila,
é
absolutamente
inautêntica.
O
estudo
que
realizamos
para
a
UNESCO,
esperançosos
de
apresentar
o
Brasil
como
um
país
por
excelência
assimilacionista,
demonstrou
precisamente
o
contrário.
O
índio
é
irredutível
em
sua
identificação
étnica,
tal
como
ocorre
com
o
cigano
ou
com
o
judeu.
Mais
perseguição
só
os
afunda
mais
convictamente
dentro
de
si
mesmos.
Tal
não
conseguem
os
serviços
oficiais
de
proteção,
geralmente
entregues
a
missionários,
e
também
não
conseguem
esses
últimos.
Povos
há,
como
os
Bororo,
por
exemplo,
com
mais
de
século
e
meio
de
vida
catequética,
que
permanecem
Bororo,
pouco
alterados
pela
ação
missionária;
ou
os
Guarani,
com
mais
de
quatro
séculos
de
contato
e
dominação.
p. 131 - Salesianos do Rio Negro:
Algum
êxito
alcançam
missões
muito
atrasadas,
como
os
salesianos
do
rio
Negro,
que,
empenhados
em
ocidentalizar
e
catequizar
os
índios
daquela
área,
juntaram
as
crianças
de
tribos
diferentes
nas
mesmas
escolas,
preenchendo
assim
a
condição
essencial
para
desindianizar
os
índios,
que
é
a
ruptura
das
relações
da
velha
transmissão
de
pais
a
filhos.
O
que
alcançaram
não
foram
italianinhos,
mas
moças
e
rapazcs
marginalizados,
que
não
sabiam
ser
índios
nem
civilizados,
e
lá
vivem
em
vil
tristeza.
p.153 - Processo de formação:
O
processo de
formação
do
povo
brasileiro,
que
se
fez
pelo
entrechoque
de
seus
contingentes
índios,
negros
e
brancos,
foi,
por
conseguinte,
altamente
conflitivo.
Pode‐se
afirmar,
mesmo,
que
vivemos
praticamente
em
estado
de
guerra
latente,
que,
por
vezes,
e
com
freqüência,
se
torna
cruento,
sangrento.
De
1500
até
hoje,
esses
enfrentamentos
se
vêm
desencadeando
através
de
lutas
armadas
contra
cada
tribo
que
se
defronta
com
a
sociedade
nacional,
em
sua
expansão
inexorável
pelo
território
de
que
vai
se
apropriando
como
seu
chão
do
mundo:
a
base
física
de
sua
existência.
Os
Yanomami
e
as
emoções
desencontradas
que
eles
provocam
entre
os
que
os
defendem
e
os
que
querem
desalojá‐los
são
apenas
o
último
episódio
dessa
guerra
secular.
p.154 – Desigualdade de forças:
As
forças
que
se
defrontam
nessas
lutas
não
podiam
ser
mais
cruamente
desiguais.
De
um
lado,
sociedades
tribais,
estruturadas
com
base
no
parentesco
e
outras
formas
de
sociabilidade,
armadas
de
uma
profunda
identificação
étnica,
irmanadas
por
um
modo
de
vida
essencialmente
solidário.
Do
lado
oposto,
uma
estrutura
estatal,
fundada
na
conquista
e
dominação
de
um
território,
cujos
habitantes,
qualquer
que
seja
a
sua
origem,
compõem
uma
sociedade
articulada
em
classes,
vale
dizer,
antagonicamente
opostas
mas
imperativamente
unificadas
para
o
cumprimento
de
metas
econômicas
socialmente
irresponsáveis.
A
primeira
das
quais
é
a
ocupação
do
território.
Onde
quer
que
um
contingente
etnicamente
estranho
procure,
dentro
desse
território,
manter
seu
próprio
modo
tradicional
de
vida,
ou
queira
criar
para
si
um
gênero
autônomo
de
existência,
estala
o
conflito
cruento.
p.162 intermediaçao alucinada
Essa
intermediação
alucinada
foi,
por
séculos,
o
motor
mais
poderoso
da
civilização
ocidental.
Aquele
que
mais
afetou
o
destino
do
gênero
humano
pelo
número
espantoso
de
povos
e
de
seres
que
mobilizou,
desgastou
e
transfigurou.
Foi
exercido
sempre
eficazmente,
da
forma
mais
impessoal
e
fria,
por
honrados
dignatários,
com
o
sentimento
de
que
se
ocupavam
de
um
negócio,
muitas
vezes,
aliás,
dignificado
como
a
grande
missão
do
homem
branco
como
herói
civilizador
e
cristianizador.