#2 - Colonizadores


#2 - Colonizadores.
Sinto vivenciar uma “realidade” muito estranha. Estranha, mas na qual me encontro ativo como ser do nosso tempo (primitivo e com uma maletinha de antibióticos na mão).

Aqui algumas histórias/estórias (sempre entrelaçadas*).

Contam:

...de uma figura marcante, a missionária evangélica Sofia Muller. A americana, lá pela década de 40, traduziu a bíblia pra língua dos Baniwa (tronco linguístico Aruwak), inclusive adequando algumas passagens à realidade local, onde onças e antas aparecem. Em certa medida dizem que protegeu as populações indígenas das relações de escravismo moderno com os “Regatões”, os comerciantes. Por outro lado os Baniwas que sofreram mais forte influência da profeta, pelo que vi, não sentam mais em roda, não dançam.

…de um pastor coreano, Pastor Kim, que tem um barco bem equipado e vive subindo o alto Rio Negro, realizando consulta médica com médicos voluntários e distribuindo medicamentos. O homem vem lá da Coréia pra pregar o evangelho às populações indígenas do Alto Rio Negro!

...da Bolsa Família que fez, subitamente, famílias e comunidades passarem a interagir com dinheiro-consumo, com a cidade. Boa parte gasta-se em Salgadinho e Cachaça
(foto do carregamento de salgadinho). Os hup'das , mais “selvagens”, menos cívicos e documentados, agora se aproximam mais das populações ribeirinhas para trocar carne de caça moqueada* por pacotinhos de suco Tang. Poderia haver, como há em cuba então, uma caderneta com a relação de produtos saudáveis/adequados (uma dieta regional equilibrada como sugestão ou bonificação, subsídio aos orgânicos, etc.) a serem liberados para o Bolsa Família. Parece desastroso o bem de consumo, o mercado livre, sem um conhecimento comunitário correspondente.

E quando penso, não posso me enganar, também somos colonizadores, de um jeito. Agentes de assistência à saúde, serviço público e gratuito, mas envoltos em relações que mal deciframos, promovendo influências que mal podemos prever. Entendo os termos da redução de danos, da necessidade de assistência e compensação histórica, num trabalho em populações marginais, ameaçadas e já vulneráveis, algumas até em declíneo populacional.

O que talvez me coloca diferente desses tantos outros colonizadores (talvez e se conseguir ter muita sensibilidade e cuidado na ação), é a percepção de que aos índios não falta nenhuma revelação. Não trago comigo nenhuma missão
para eles, nenhum meio para se elevarem, nenhuma ideia de que já não sejam aptos, perfeitos e salvos. Trago sim algumas idéias de manutenção dinâmica, do direito à terra, da valorização própria das culturas tradicionais e dos conhecimentos e culturas mais orgânicos, da auto-gestão, da simplicidade. Mas isso é inicialmente demanda minha, como se eu quisesse que “eles” (indígenas) quisessem essa preservação daquilo que sou eu mesmo que valorizo, pelo que vivi e observei por aí, pelos descaminhos e violências, pelo sofrimento que vejo, pelos limites críticos que enfrentamos, pela ameaça que somos a nós mesmos. Busco como que uma possibilidade para o homem...

Lidamos também com a contrariedade da ação individual, curativa ou que alivia o sofrimento agora, e as repercussões socioculturais, transversais, dessas ações...


kike, out/2012

*sugestão de livro: “Fractais da História” - Paulo Urban