#4 - Em Tunuí


#4 - Em Tunuí, para 30 dias.

Ińdios Baniwa, tímidos e quietos.
Uma serra pontuda suavizada por colinas entre vales de açaí, com gente no rio ou trilhando caminhozinhos às roças, ao igarapé. Crianças maiores cuidavam dos mais pequenos. E cachorros magros eram medrosos. Uma cadelinha chamada “Embratel” era a única que fazia festa.

Nas consultas, nas visitas domiciliares, no futebol do fim da tarde, nas subidas de serra, percebi um povo rigoroso e reservado, tranquilo. São evangélicos agora (como boa parte dos índios baniwa do rio Içana). Em conversa no centro comunitário, foi difícil a idéia de nos colocarmos em círculo, eram acostumados ao microfone e ao palestrante, no formato acadêmico ou de igreja. Depois me disseram que a roda e a dança estavam associados ao uso do Caxiri*, sendo o álcool não aceito entre evangélicos. Em conversa sobre “dores do corpo” eu perguntei como faziam pra agachar, pra pegar algo no chão ou trabalhando na roça. Dobraram o tronco sobre o quadril. Sugeri que dobrassem o joelho, como um semi cócoras. Disseram que era posição de cagar. Riram de mim e comigo.

Numa manhã atendi ao pré-natal de uma gestante de alto risco (3 cesáreas anteriores, 41 anos e uma cirurgia de apendicite há 6-7 meses). A princípio, ela desceria para SGC, à CASAI*, 1 mês antes da data provável do parto, o que seria dali há 1 mês mais ou menos. Vi que não batia o tamanho do útero dela com a idade gestacional estimada. Ela já estaria prestes a ganhar. Conversei com a equipe pra anteciparmos a descida da mulher, mas na noite do mesmo dia ela iniciou o Trabalho de Parto. Me arrependi por não ter dado mais atenção àquele olhar muito triste daquela mulher naquela manhã.

Eram 22h e eu tinha um dilema. Descer 8 horas rio abaixo, madrugada toda, com o risco noturno e a enorme possibilidade de termos um parto na voadeira. Ou ficar na comunidade esperando pelo melhor? Perguntei se havia na comunidade alguma parteira ou alguma mulher de confiança da gestante. Dali a pouco apareceu a parteira, justamente uma senhora que eu havia atendido durante a tarde, feito uma massagem na lombar contraída. Eu perguntava pra parteira o que ela achava e ela só respondia “o senhor é que sabe”, ou teria sido “o Senhor é que sabe”? Descidimos descer. Antes, foram 2 horas pra carregar 150 litros de gasolina e um motor 40 de cima para a parte de baixo da cachoeira, pela trilha. Eu pensava que não tinha ido até lá pra carregar gasolina de dono de posto de gasolina morro acima! Fiquei puto com o litro de gasolina que caiu em mim no transporte e fiquei fungando aquele cheiro lucrativo da gasolina. Pensei que não aprovava aquilo, aquela politicagem de combustíveis. Ao mesmo tempo, como um burro de carga que já não sabe o que é caminho sem um fardo nas costas, eu tava alegre da força. Depois voltei até a casinha da senhora com pressa. Lá estavam todos tranquilos, calmos, bem calmos. Um foguinho de barro esquentava a mulher com dores, a parteira ali, presente, acolhendo. Me senti afoito, foi um espelho nítido aquela tranquilidade. Não é que não faziam o que precisava ser feito para aprontarmos a saída, apenas não se apuravam.

Embarcamos meia noite e meia, passamos uma corredeira no escuro, eu tava espantado com a habilidade do prático. Como é que ele desviava das pedras no escuro? É como se ele tivesse toda memória do rio sincronizada com a ação dele. E era do tipo de habilidade/conhecimento popular que atravessa o ser daquele cara. Não há uma mantalização precisa para aquele trabalho tão preciso. Não há cartas do rio Negro, nenhum curso de navegação poderia passar esse conhecimento empírico. Se esses trabalhadores, tivessem consciência da raridade do seu conhecimento, talvez não recebessem tão pouco. Uma greve e o sistema todo para, sem quem possa substituir.
Foi uma das madrugadas mais doidas da minha vida. A lua sorria quase cresente. 8 horas voadeira a toda rio abaixo, torcendo para aquele bebê não nascer, passando um pouco de frio. O bebê não nasceu. Chegando em SGC, fui na ambulância junto até o Hospital Militar. Entrei com a gestante e a primeira coisa que diz o plantonista gozador foi: “Fecha as perna muié!”.

Kike, out/2012